sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Conto: Os Deveres da Paternidade

Conto escrito para o desafio operário da comunidade Fábrica dos Sonhos. Na verdade, não o conto abaixo, mas sua versão anterior, que recebeu comentários e críticas muito bem-vindas. A versão publicada aqui é revisada, e acredito ter ficado bem mais clara do que as anteriores - eu comento as alterações no final do post.

Os Deveres da Paternidade

Marcel Breton

Quando a Fátima acordou, eu esperava pela pergunta: onde está o jelle?, mas a dúvida não veio. E também não veio nenhuma de suas palavras, mesmo as tão repetidas, mesmo quando ligaram o videofone para que pudesse ver a mãe. Estou sentado na cama do hospital, ao lado dela, a cabeça abaixada, os dedos afundados entre os cabelos. Fátima ergue com dificuldade o tórax magro e me abraça silenciosamente – um instante terrível e breve, quando realmente desejo que ela me pergunte pelo seu bicho de estimação.

Sim, é papel dos pais tolerar as péssimas escolhas de animais feitas pelos filhos, mas eu não a havia perdoado (muito menos a sua mãe) por terem acolhido um jelle. Eu o detestava, e abominava especialmente aquela voz tão serena que parecia estudada. Mesmo sabendo que os tradutores são programados para simular o estado emocional da criatura que os usa, eu gostaria que sua petulância fosse algum defeito no aparelho. A mesma voz me avisou, dias atrás e mais de uma vez, que sofria de uma doença terminal típica de sua espécie. Claro, eu não contei a nenhuma das duas; considerei toda aquela ideia estúpida sobre a necessidade de uma criança vivenciar, na decrepitude de seu animal de estimação, uma forma cruel de amadurecimento. Além do desejo de, finalmente, me ver livre daquela criatura quase translúcida, traficada aos milhões para fazer companhia às crianças durante a ausência de seus pais.

Márcia avalia o potencial econômico de meteoros, ou seja, partiu uma semana antes do acidente e agora está a dezenas de milhões de quilômetros da estação. Eu tento relembrar os detalhes, mas só consigo ouvir: o estrondo gerado pelo choque de dois corpos tão distintos em massa e velocidade e o grito interrompido que se seguiu ao encontro entre o transportador de carga e minha filha. Seria mais fácil se eu soubesse o instante exato em que minha atenção foi desviada, o objeto que capturou meus pensamentos, o intervalo que se passou desde que ela saiu do meu lado e correu para ver algo que só chamaria a atenção de uma criança. Se eu soubesse – ou lembrasse – algum destes detalhes, teria coragem de dizer a Márcia que a Fatinha estava viva graças a aparelhos e sua recuperação era tão improvável que mesmo um físico como eu, acostumado às medidas mais ínfimas da matéria, avaliaria seriamente o uso da palavra "impossível" entre as outras, escolhidas com cuidado e desalento, para informar a minha mulher que nossa filha estaria morta em poucas horas. Exasperado, decidi experimentar estas mesmas palavras ao ligar para casa e descarregar toda a história no jelle, que sempre atendia ao videofone quando não havia ninguém lá.
- Há uma forma, senhor Paulo. – ele disse – De salvar a mim e talvez a sua filha.

São proibidas as visitas acompanhadas por não-humanos, então o carreguei dentro de uma bolsa imune a nanovistorias. Libertei o jelle na cama, ao lado do rosto dela. Ele se contorceu, seu aspecto maleável e repulsivo espalhou-se pelo rosto de minha filha e adentrou silenciosamente entre os lábios entreabertos pelo respirador.

Pela mesma boca (lembra a de sua mãe) emudecida que toca meu rosto agora neste abraço tão delicado e conhecido que me faz perguntar quando poderei ouvir sua voz novamente; quando as duas mentes estarão finalmente separadas.

Ok, vamos aos fatos: o diálogo não funcionava mesmo, tentei, tentei e vi que simplesmente não havia como encaixá-lo na história. Logo, foi limado sem dó nem piedade da versão final.
A estrutura, ou melhor, a exposição das informações, também estava confusa, especialmente o tempo em que os eventos eram narrados. Decidi esclarecer logo no início que havia um pai e uma filha no hospital e deixar que o pai narrasse o que os levara até ali.
O jelle também é um problema e a aparição da doença dele estava muito deus ex-machina, citada apenas no final como se fosse uma forma rápida de amarrar tudo. Mudei para o início do conto e parece ter funcionado melhor, assim como algumas outras alterações menores que introduziram elementos mais, digamos, cedo, na trama.
Quanto ao tema proposto (Altruísmo), é verdade, fugi um pouco dele. Então, ao invés de uma tragédia em que o pai sabe que provavelmente não salvou a filha, este novo final insinua uma simbiose, que talvez ainda demore um pouco para se completar.

No mais, agradeço aos comentários e espero continuar participando dos desafios - e manter-me preso aos 550 caracteres foi bem complicado...