quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Conto: Jantar de Negócios

Conto escrito em 1997 e publicado no (há alguns anos offline) site FCOnline, no mesmo ano. Não o revisei para publicar aqui, e se encontra exatamente como há 12 anos, incluindo a "velha ortografia".

Jantar de Negócios

,ela gritou antes que eu pudesse explicar. Não que minha esposa não tivesse razão – seria o quinto jantar para diplomatas dentro de nossa própria casa, apenas neste mês. Primeiro foram os angolanos, depois os indianos, italianos, portugueses e para concluir, os norte-americanos. Os próximos seriam os niolianos.
- Quem?
Minha filha veio em socorro, como havíamos, os dois, previamente combinado:
- Niolianos, mãe. Os habitantes do planeta Nioli.
Marta colocou as mãos na cintura e, esmaecida a voz de imperatriz, restringiu-se a balbuciar, sentando-se no sofá:
- Vocês tão brincando...
- Mãe, eles tão preparando esse encontro há pelo menos cinqüenta anos...
- ...que eu vou servir um jantar pra um bando de “etês” ?
- ...e é uma honra saber que o papai foi escolhido pra recepcionar eles.
Sorri e dei de ombros:
- É, querida. Eu e mais dez diplomatas de diversas nações vamos fazer as honras da casa. Era por isso que o senador Pessoa ligava tanto pra cá.
Ela se sentou, levando a mão a boca:
- Luísa, me diz que seu pai não ficou doido...
- Não, mãe, ele é um privilegiado, a senhora não ‘tá vendo? – ela se levantou do sofá e balançou as chaves do carro na nossa frente – Agora me dá licença que eu vou pra faculdade.
Sentei-me ao lado da Marta e segurei suas mãos com as minhas. Olhei para a sua expressão aterrorizada e, embora eu mesmo tentasse manter a calma, procurei não transmitir meu nervosismo. Pensei seriamente em recusar a tarefa que o otimismo juvenil de minha filha apelidava de “honra”, mas havia a promessa de uma recompensa – o retorno ao Brasil e a candidatura ao governo de Minas. Eu sei que tenho condições para a disputa e o Pessoa prometeu cuidar pessoalmente das coligações que fossem necessárias, naquele jeito carioca dele: “Tu já é governador, Marcão! Tenss tudo pra issso, garotinho!”. De forma que expliquei, detalhe por detalhe, todas as variáveis que eu conhecia para Marta. Apelava, assim, para sua racionalidade, a mesma que tantas vezes havia me ajudado.
E foi como um ser humano racional, maduro e ajuizado que ela fez aquilo que espera-se de qualquer um nas mesmas condições.
Correu para o banheiro e vomitou.
***
E aceitou a incumbência com uma pergunta:
- O que eles comem?
- Essa é a parte boa, Marta. Olha só. Você ouviu o que a Luísa falou. Esse encontro está sendo preparado há cinqüenta anos. Como eles vieram até nós, eles quiseram, para facilitar ao máximo a nossa comunicação, aprender nossas línguas, nossos... detalhezinhos, sabe?
- Detalhezinhos? Tipo... Etiqueta, língua, roupas?...
Fazia apenas duas horas tivéramos aquela primeira conversa na sala. Agora sozinhos na nossa cama, Marta pelo menos aparentava mais calma.
- Eu recebi as fotos, os nomes e um monte de outras informações pelo correio eletrônico hoje mesmo. – continuei.
- Então... você só soube hoje?
- Claro. – sorri – Ou você acha que eu ia te enganar, querida? Eu ia deixar de te dizer uma coisa dessas? Ia esconder isso de você só pra te não te dar a chance de você dizer não?
Fui escolhido há pelo menos um ano e meio.
- Bom... Tudo bem, tudo bem, fôlego Marta, fôlego... Você já fez coisas piores na vida... – ela aspira uma quantidade enorme de ar antes de prosseguir – E.. você... assim, tem um foto deles?.
Levantei-me e fui até a cômoda do meu lado de dormir enquanto explicava:
- Eles são iguais a gente, Marta. Têm um monte de culturas, um monte de línguas, feições diferentes pra cada raça... Eles são bem curiosos, sabe?
Achei a foto que havia impresso pela manhã e a estendi para ela.
- Ah, então eles são parecidos com a gente? – ela disse, antes de realmente perceber que a questão da semelhança entre nós e eles resumia-se a forma humanóide - além da qual a evolução concedeu diferenças significativas.
Marta observou a foto por alguns segundos, a jogou pela janela e voltou ao banheiro.
***
- Nioli!... Isso parece nome de sabonete!
Luísa usava um vestido longo e vermelho, em contraste com o batom preto que resolveu aplicar nos lábios. Como se não bastasse, trazia o nosso gato próximo ao peito, fazendo do coitado um minúsculo cobertor para seus braços finos. Seu comentário, de estudante de publicidade, não correspondia a posição favorável que tinha demonstrado até então.
- Ah, filha... – cheguei perto do seu ouvido – Você antes me apoiava e agora me dá bronca?... Ô meu Deus, filhinha, eu vou ser governador! Você não quer voltar pro Brasil, meu bem?
- Ela me disse que não quer ir, Marcos.
Marta nos interrompeu, jogando para o lado uma mecha de cabelo que insistia em atrapalhar seus olhos.
- Como é? – Repliquei.
- Marcos, essa menina já tem vinte e quatro anos, ela decide se vai ou não!
- Peraí, Marta! Ela tem vinte e quatro? Desde quando? Você tem vinte e três, não é não, filhinha?
Os três, prostrados em frente a mansão alugada pela ONU para o evento, éramos ridículas estátuas paramentadas. De costas para uma casa espaçosa, encravada numa montanha pouco elevada dos alpes franceses e acariciada por ventos brandos, embora gélidos. Poucos sabiam das localizações – há um grande temor de ataques terroristas ou de seitas fundamentalistas contra os niolianos e contra nós mesmos, os embaixadores. Pensava nisto enquanto tirava a manga da frente do meu relógio – oito e sete, atraso pequeno. Eu vestia um casaco sobre o terno para proteção adicional, já que jamais suportei quedas de temperatura, mesmo as mais suaves. Já imaginava que aquele encontro seria tumultuado. Estava tão certo disto que sequer insisti no assunto da idade de Luísa. Muito embora soubesse que seu atual mau humor e antipatia a nosso possível retorno ao Brasil devia-se a um tal Pierre (nenhum nome poderia ser mais típico), universitário também, conhecido numa aula de redação publicitária.
- O helicóptero, pai! - minha filha despertou-me com um grito.
A aeronave surgiu de entre as rochas, ensurdecedora, uma monstruosa máquina de transporte bélico cedida pelo governo russo que nos sobrevoou, próxima demais, para, em seguida, pousar graciosa no círculo pintado no chão rochoso. Dois soldados empunhando fuzis saíram da porta mais próxima a cabine. Logo depois outra dupla parou bem a frente da porta maior de aço e, um de cada lado, puxaram as placas metálicas até que os passageiros puderam descer.
- Meu Deus do céu... Quê que é isso, Marcos?
Marta estava certa. Eu diria o mesmo se as imagens seguintes não tivessem me hipnotizado. Dois longos e musculosos membros articulados desceram a pequena escadaria. Terminados em robustos pés de seis dedos com dois polegares, traziam atrás de si o corpo de Uila, o marido. Vestido com um paletó descomunal, era em si um espetáculo para os olhares. O único braço que saía do tórax, quase do tamanho das pernas, o auxiliou a sair do helicóptero agarrando-se a parte superior da porta, concedendo-lhe o impulso extra para ficar, afinal, em pé – o que significa dois metros e trinta centímetros de nioliano. Soube, depois, que ele e a esposa são considerados baixinhos lá.
Ariai veio após, estendendo o braço para o marido. Usava um colar – gentilmente concedido pelo presidente brasileiro, que os recebera antes deste compromisso – e um vestido preto longo que escondia-lhe as pernas. Seus olhos eram ainda maiores e mais delicados que os do companheiro, duas finíssimas linhas que partiam das narinas até as orelhas, pequenas, quase invisíveis àquela distância. No lugar de cabelos, uma grossa aglomeração de tentáculos alongados e azuis pendiam de suas nucas que, agitados pelo helicóptero, assumiam formas inesperadas sobre suas cabeças. Se não mencionei a cor da pele deve-se a mais absurda das razões, ou seja, porque eles têm a mesma cor que nós. Da boca de lábios discretos e tão finos quanto os olhos pudemos ouvir Uila, nitidamente e sem sotaque, agradecer aos oficiais:
- Obrigado, capitão. Estou certo de que estaremos bem agora.
O capitão gritou – sobrevoariam a área para certificar-se da segurança.
- Obrigado, capitão. - agora era Ariai.
Os timbres idênticos assustaram-me. Imediatamente, visualizei a Marta falando como eu e o pensamento, entre o hilário e o ridículo, afastou-se apenas quando os dois, já próximos de nós, nos estenderam as mãos:
- Senhor embaixador da Terra, somos muito gratos por esta recepção.
- Nós é que temos a agradecer, senhor Uila. Nos sentimos honrados por sua visita.
Abandonando a minha mão, ele balançou a dele, semelhante aos pés, mas de dedos mais longos, da mesma forma como um de nós faria para dizer:
- Não, “senhor” não. Apenas Uila – e sorriu para minha esposa, ao mesmo tempo em que apresentava-nos a dele - Esta é a minha esposa, Ariai.
Marta era um espelho de minhas reações. Preparada pelas fotos e textos que lhe passei, substituía o medo por um fascínio difícil de descrever. Enfim, encerramos os cumprimentos e os convidei para entrar. A mansão fora delicadamente reformada para recebê-los, o que, na prática, significava um conjunto de doze poderosos e incômodos holofotes na área externa e um teto a três metros do chão, além de sofás e cadeiras diferenciadas. Não era confortável ter por companhia alguém quase duas vezes mais alto, mas após acostumar-se a olhar para cima, não há maiores problemas. Claro, seria mais fácil se não fossem niolianos – neste sentido, Uila era exemplar, tanto em demonstrar intimidade com nossos hábitos quanto em destreza com sua única mão, e, em muitos momentos esquecemos completamente que não era, digamos, humano..
- Meus amigos... – ele disse antes do jantar – um pressuposto interessante para o pleno desenvolvimento da inteligência numa espécie é a existência de um órgão de manipulação, como as nossas mãos. – e arrematou – Quando digo nossas, quero dizer a minha e as suas. – e sorriu.
Ariai entretinha-se com Isidoro, o gato, ao mesmo tempo em que conversava com Marta e Luísa. Eram três criaturas encantadas: minha filha e minha esposa com a inteligência de Ariai e nosso bicho de estimação com o braço da alienígena, que ela articulava de formas indescritíveis, movendo rapidamente os dedos que o Isidoro tentava agarrar. Ofereci vinho branco a Uila – agradeceu, bebeu-o em goles suaves e retomou a piada que contava exatamente de onde eu o havia interrompido. Era uma piada brasileira, que alguém teve ter lhe contado no vôo para cá. Não aprenderam ainda a contá-las, lembra-me de uma crônica do Veríssimo, que descreve o sujeito errado para contar piadas, aquele que começa como Uila iniciou a sua:
- Bom, eu não sei contar piadas, mas...
Não vou gastar seu tempo descrevendo uma anedota miseravelmente difundida pela mera razão de ter saído da boca de um alienígena. Ainda bem ele escolheu decorar uma das nossas. Tente imaginar Uila rindo enquanto acredita estar animando uma roda de, digamos, terráqueos, numa festa diplomática:
- Era uma nave cargueira Lundiscal com três cápsulas de fuga individuais. O piloto e o co-piloto já haviam saltado. Ficaram para dividir a última cápsula um papagaio carnívoro de Trenisga, o Juquinha e um vulcano...
Desculpe-me pela divagação. Voltemos. Devo dizer que Uila achou o presidente brasileiro simpático e acrescentou que acabou gostando da comida mineira.
- Eu sou de Patos de Minas e minha esposa de Uberaba, duas cidades de Minas Gerais. – acrescentei, solícito.
- Por falar nisso, já poderíamos jantar, não? – Marta perguntou, a que Ariai respondeu com um simpático e efusivo “é claro”.
A transformação em curso. Simpáticos, educados, os embaixadores de Nioli já haviam ganho o título de melhor jantar de negócios de todos os que fomos, eu e minha família, obrigados a dar. Finalmente tínhamos prazer genuíno em recepcionar. A impressão prosseguiu à mesa. Com a já citada habilidade com o membro único, os niolianos trocavam constantemente de talheres, o que os fazia mais lentos. Marta, que ingere seus pratos com uma pressa instintiva, teve de diminuir o ritmo para acompanhar Ariai e suas interessantes observações sobre as culturas do seu planeta natal.
Eu utilizava minha experiência de viajante oficial para falar-lhes dos hábitos nativos; do meu amigo que passou duas horas assobiando para um garçom em Paris até ser atendido por um português ao meu embaraço quando quase ofereci um presente a esposa de um diplomata do oriente médio. Fosse melhor assim, apenas amenidades, nada de política ou – esta é ótima – futebol. E se eu descobrisse que durante todos estes anos na Terra, Uila adquirira uma inexplicável paixão pelo Flamengo? Discutiríamos, evidentemente. E não era o que a ONU desejava, lembro-me da reunião na embaixada norte-americana em Londres, quando nos foram passadas as últimas diretivas. Não discute, seja amigável, nada de política, fuja de perguntas embaraçosas. Vocês foram escolhidos para representar o povo deste planeta. Podemos até não ser grande coisa, mas vamos dar a impressão de que somos.
Exatas palavras daquele general norte-americano, cujo nome esqueci. Nada mais falso do que uma mansão nos alpes franceses. Nada mais falso do que este lisonjeio ensaiado com o qual os recepcionaríamos. Um embaixador ao invés de cientistas – falso e, entretanto, lógico. Quem tem mais condições de tratar com povos desconhecidos do que os embaixadores? Foi uma escolha estranha, um raciocínio diverso do senso comum, mas aquela cordialidade de Ulia e Ariai mudou minha opinião. A operação era um sucesso.
Durante algum tempo fiquei na sala apenas com Ulia, enquanto as mulheres iam passear lá fora, às vezes sob o olhar do helicóptero, quando este passava sobre a mansão, nos lembrando de sua presença com o barulho sempre desconfortável das hélices.
Quando eu ia falar sobre minha atual vida na França, minha filha abriu a porta, olhou pela sala, chamou o Isidoro, sorriu para Ulia e atendeu o telefone.
- Uila, com licença, por favor. – ela disse – Pai, é pro senhor.
***
Não notei quanto tempo gastamos. O período do jantar terminava ali e exatos dois minutos após o helicóptero pousou novamente no platô. Os soldados executaram sua dança de praxe, enquanto nos despedíamos.
Primeiro Ariai, Marta, Luísa e eu. Trocamos frases gentis e então Ariai dirigiu-se para a máquina com a elegância de movimentos que aprendi a identificar nos corpos disformes dos niolianos. Uila deve ter estudado manuais de etiqueta do século passado – beijou as mãos de minha esposa e minha filha, depois de perguntar-lhes se poderia, após uma pequena explicação sobre o fato de não possuir saliva e um pedido de desculpas pelo detalhamento, que poderia soar repulsivo. Ambas sorriram e estenderam-lhe os braços.
Com um forte aperto em minha mão direita, ele pediu “um instante”, praticamente me obrigando a acompanhá-lo até o helicóptero. Ele iniciou:
- Meu caro embaixador, senhor Marcos, representante dos povos deste planeta...
- Sem exageros, Uila.
- Devo-lhe desculpas pelo comportamento de minha esposa.
Paramos.
- Desculpas? Que é isso, Uila? Ela foi adorável!
- Ah, certamente – ele elevou o braço – Até o limite de sua determinação e seu maravilhoso caráter, com certeza, ela foi! – a linguagem dele, para mim, de um, na falta de descrição menos vaga, “barroco” quase insuportável, sequer incomodava mais.
- Mas... o que eu devo desculpar?
- Vamos continuar, mas ande lento, que o frio me faz bem. – suponho que ele tenha suspirado antes de prosseguir – Não deviam tê-la deixado sozinha, foi um pequeno lapso de sua esposa, ocorrido quando passeavam ao lado da janela da sala de jantar e sua filha ouviu o telefone e as duas foram para a casa...
Dei de ombros e ele prosseguiu:
- Ela está se esforçando em perder os antigos hábitos, mas não é tão fácil... Resumindo, senhor Marcos, eu... Sinto muito pelo seu gato. Foi um jantar fantástico, mas insuficiente em quantidade para a maioria dos niolianos e ela o complementou de forma altamente discutível. Realmente sinto muito.
Chegamos perto dos soldados. Uila sussurrava a meu ouvido, de maneira tão eficiente que apenas eu poderia ouví-lo sob as hélices. Ele separou o rosto de mim e prestou-se a despedida normal:
- Até mais, senhor Marcos.
- Sem o “senhor”, Uila. Só Marcos.
Minha resposta, correspondente àquela dada por ele antes, soou mecânica, ensaiada. Afastei-me da máquina russa, mas não fiquei entre minha filha e esposa, abraçando as duas, como se esperaria no desfecho de um filme norte-americano, por exemplo. Apenas dei suficiente distância para o decolar tão suave – e monumental - quanto o pouso. O helicóptero pairou por uns poucos segundos, girou em seu próprio eixo até encontrar uma fresta entre as montanhas e zarpou. Em dez minutos um aparelho idêntico viria nos buscar – o Pessoa prometeu que estaria a bordo.
Eles iam pedir um relatório, fazer perguntas, escutar as fitas gravadas pelos microfones implantados por toda a casa, talvez nos manter sob quarentena. E, embora devesse, ainda que levemente, temer pelo futuro da humanidade, a única coisa que me preocupava naquele momento era em inventar uma boa história para o sumiço do Isidoro.