Atenção: SPOILERS de
todos os episódios, inclusive do último. Se ainda não assistiu a toda a série,
leia por sua conta e risco.
A série
True Detective mobilizou milhares, talvez milhões de fãs na
internet, compartilhando e criando teorias, unindo peças sutis, detalhes quase
imperceptíveis e grandes sacadas para desvendar o mistério dos assassinatos e
estupros ritualísticos cometidos na Louisiana de 1995. Poucas vezes se viu, na
televisão, uma série tão adulta e pessimista, aliando alta qualidade de texto, interpretações
e cinematografia.
Criada pelo escritor e roteirista
Nic Pizzolato (também responsável por dois episódios de The Killing) e dirigida por Cary Joy Fukunaga (Jane Eyre), True Detective
pretende ser uma antologia de histórias. Cada temporada apresentará uma trama
diferente, com personagens e cenários distintos. Nesta primeira encarnação,
Pizzolato explora o sul da Louisiana, sua terra natal, e nos oferece uma terra em
que a civilização e a selvageria não apenas convivem, mas é quase impossível
dizer onde uma termina e começa a outra. O
homem é o mais cruel dos animais, já dizia o pôster de True Detective.
Narrativa
Há três linhas temporais: 1995,
2002 e 2013. O texto demonstra habilmente como os acontecimentos em um momento
influenciaram os rumos da história e dos personagens até os dias de hoje. Tudo
é relativamente sutil, e exige bastante atenção do espectador. O que faz a
união entre os diferentes tempos são os entrevistas da polícia com dois
ex-detetives, Marty (Woody Harrelson) e Rust Cohle (Matthew McConaughey), os
responsáveis pela investigação dos crimes cometidos em 1995.
Aos poucos, o espectador descobre
o que afastou os dois homens, o rumo das investigações e o mais importante: que
eles não dizem toda a verdade. O que eles estão fazendo é, em resumo, contar
suas versões da história. Como bem notou Ana Maria Bahiana, True Detective é também sobre a arte de
narrar. Há mil histórias possíveis na série, como se Sherazade estivesse nos
entretendo com um único grande e detalhado conto sobre violência, degradação e
desesperança de uma forma tão verdadeira que é impossível parar de ouvir sua
voz.
Quem esperava de True Detective a união de todas as
pistas na direção de uma única explicação integrada e redentora pode se
decepcionar. Pizzolato dispôs uma quantidade absurda de peças, escondidas em
tatuagens no pescoço de um personagem, o quadro ou a foto na parede da casa de
outro, uma única fala que parece gratuita mas que ecoa em acontecimentos
mostrados dois ou três episódios depois. A série abasteceu os fãs com toneladas
de possíveis red herrings e muitos
sequer foram explorados. Por quê?
Em primeiro lugar, a série
acompanha os pontos de vista de apenas três personagens: Rust, Marty e sua
mulher, Maggie (Michelle Monaghan). Ou seja, é um recorte de uma realidade
maior. As conexões dos crimes escabrosos investigados pelos dois detetives são
amplas demais, grandes demais para que eles consigam reconstruir. Além disso,
ao contrário de obras mais convencionais, em que um ou dois detetives desvendam
e desmontam esquemas grandiosos de crimes, aqui uma boa dose de realidade se
faz presente, expressa na fala de Marty ao final, quando Rust lamenta não terem
pego todos os envolvidos: “Mas pegamos o nosso homem”. Logo, há tanto elementos
que eles não conseguem relacionar (seja porque o foco da investigação era mais
simples e urgente, seja porque, afinal, não tiveram tempo) quanto outros que
apenas o espectador percebe e que, muito provavelmente, fazem parte da trama.
Por exemplo: os desenhos de cunho
sexual feitos por Audrey, filha de Marty, a sua transformação em uma
adolescente problemática e posterior artista adulta (um de seus supostos quadros
tem estrelas negras e espirais, elementos recorrentes da série) que mantém a sanidade
a base de medicamentos, revelação feita por Maggie ao seu pai. Junte-se a isso
o círculo de bonecas feito por ela, reproduzindo o estupro ritual e grupal praticado
pelos pedófilos do grupo, e (outra vez) Maggie revelando que o marido se
encontrou na igreja, por algum tempo. Haveria ligação entre o culto ao Rei
Amarelo, a igreja que Marty frequentou e as estranhas reações de sua filha?
Espertamente, Pizzolato jamais responde a pergunta, deixa que ela fomente a
mitologia da série.
Carcosa e o Rei Amarelo
Falando em mitologia, True Detective chamou a atenção da
comunidade de fãs de literatura fantástica pela relação com o livro The King in Yellow, de Robert W.
Chambers, como notado no já famoso artigo do io9. A cidade mítica de Carcosa,
as estrelas negras, o Rei Amarelo e a revelação da natureza incompreensível e
enlouquecedora do universo são citados várias vezes. Curiosamente, o livro The King in Yellow jamais é mencionado.
É como se True Detective se passasse
em um universo em que esta obra não existe (é natural supor que Rust, com sua
erudição e interesse pela natureza humana, a conhecesse, mas ele não fala
nela). Na verdade, talvez seja algo ainda pior: a série se passa num mundo em
que homens equilibrados e influentes acreditam em horrores que envolvem o
sacrifício e o estupro de crianças e mulheres sob a desculpa de uma suposta força
superior. Quando Rust e Marty finalmente encontram Reggie Ledoux, um dos
assassinos e membro da seita, ele diz a Rust: “Você está em Carcosa agora”.
Note-se também que o amarelo é
uma cor tradicionalmente relacionada a decadência, a deterioração. Várias
vezes, especialmente quando Rust é enquadrado, a palheta de cores aproxima-se
bastante do amarelo, do ocre, dando a várias sequências uma aparência de
degradação. Em determinado momento, o próprio Cole diz que “sua vida foi apenas
degradação e violência. Estou pronto para dar um fim a isso”.
Personagens
A grande estrela de True Detective são seus dois protagonistas,
Marty e Rust, ambos interpretados com maestria por Woody Harrelson e Matthew
McConaughey.
Marty é um policial conservador,
casado e pai de duas filhas, que deixa sua inteligência e energia serem
dragados por casos extraconjugais que lhe custarão muito caro. Se Rust age e
vive conforme sua visão bastante particular do mundo e da humanidade, Marty
prega uma coisa e faz outra. Não sabe lidar com sua filha adolescente e tende a
resolver seus conflitos de forma violenta (atira em Ledoux por impulso e
espanca metodicamente os dois jovens flagrados com Audrey).
Rust é um niilista, pessimista e
ateu convicto, perdido em um sul norte-americano cristão. Despreza a humanidade
(“um erro da evolução movido a ilusão de consciência e individualidade”) e o
universo (“um sistema fechado em que tudo se repete infinitas vezes; você
morre, apenas para renascer na mesma vida e repeti-la novamente”). Inicialmente
reservado, faz de Marty o depositário de sua visão aterrorizante de mundo.
É a relação e a evolução dos dois
o grande arco de True Detective, e
isso é mais importante do que a trama. Eles só serão íntegros, só serão homens
realizados ao abraçar a obsessão de resolver os crimes de 1995. Ambos mentiram
para si mesmos, viveram a ilusão de ter encerrado o ciclo de assassinatos. O
momento em que o que realmente aconteceu no esconderijo de Ledoux e o que eles
contam a polícia é um dos pontos altos da série. Eles são aclamados heróis e
vivem vidas boas e felizes por algum tempo. Mas, aqui, a felicidade é uma
ilusão. Marty tem de lidar com a desintegração de seu casamento e de sua
relação com a filha. E Rust é novamente atraído para o caso (é emblemática a
cena em que ele se aproxima de uma espiral de gravetos no tronco de uma árvore,
como se o estivesse chamando), o que o leva a sair da polícia definitivamente. Lançados
de volta ao vazio, eles se reúnem em 2013 e seguem as pistas colecionadas por
Rust até a família de Tuttle e o “homem com cara de espaguete”. Agora focado no
caso, é Marty quem acaba fazendo a conexão necessária para descobri-lo.
Ainda temos Maggie, a mulher de
Marty, que, muitas vezes, faz o papel do espectador, tecendo observações
pertinentes sobre seu marido e Rust (por quem, desconfio, tinha certa queda,
correspondida secretamente). “Rust é um homem decente.”, ela diz. “Ele sempre
soube exatamente quem era. Ao contrário de Marty, que jamais descobriu quem
realmente é”.
O final (feliz?)
Diante de tanta expectativa e
teorias (algumas completamente alucinadas) dos fãs, o final, exibido no dia 09
de março, dividiu opiniões. Em parte, confesso, esperava mais. Talvez mais
detalhes, uma maior explicação da “grande conspiração”. Mas eu descobri que
estava pensando de forma equivocada, havia sido enganado pela expectativa
padrão que criamos sobre toda história de detetives: a solução do crime. True Detective, como eu já disse antes,
concentra-se no ponto de vista e nas pistas limitadas seguidas por dois
personagens. O resto é a mitologia da série. O final não poderia ser mais
simples e direto, como deve ser uma destas histórias. Foi intenso e, em alguns
momentos, perturbador – de um jeito um tanto errado.
Concordo com o io9, que cita como
ponto fraco a criação de um vilão óbvio para encerrar a trama. O white trash Errol em sua casa decrépita,
com o pai morto acorrentado na cama, e mantendo relações sexuais com sua tia
obesa e de intelecto aparentemente limitado parecia uma mistura de Seven e O Massacre da Serra Elétrica com o mais grotesco episódio de série
de TV já feito: o Arquivo X dos irmãos deformados que escondiam a mãe amputada
debaixo da cama e mantinham... ok, você já entendeu. Foi uma concessão um tanto
óbvia ao desejo do espectador em ver
o mal em toda a sua horripilante natureza. True
Detective não precisava disso. Já havíamos sido expostos a toda forma de
mal, de formas sutis ou explícitas, e Errol acabou parecendo uma caricatura,
quase um exagero. Mas há algumas coisas que merecem ser mencionadas e que podem
explicá-lo.
A casa dele tem pilhas de livros.
Seu vocabulário e construções gramaticais são ricos e articulados. Errol é
cruel e inteligente (“ele é o pior de todos”, diz sua tia para Marty),
fazendo-se de tolo para se aproximar das crianças que sacrifica e violenta. Por
outro lado, é o elo mais fraco da corrente, fruto das maquinações dos poderosos
Tuttle. Se Errol é uma caricatura do mal, ele é assim porque é pouco mais do
que um “boi de piranha”, o monstro que nós identificamos com facilidade enquanto
os maiores vilões estão escondidos por trás de reputações, poder, igrejas e
influência.
Se Rust e Marty, apesar de todos
os indícios em contrário, sobrevivem, é uma surpresa agradável, afinal, gostamos
deles. Rust, na cadeira de rodas, diz que no fundo, tudo tratou-se da mais
antiga das histórias, “da luz e das trevas”. Quando Marty diz que olhando o
céu, parece-lhe que há mais trevas, Rust replica, dizendo que, do seu ponto de
vista, significa que a luz ainda prevalece. Ambos caminham para fora do
hospital e parecem, mais do que nunca, dois amigos de longa data. É um final
feliz, certo? Até certo ponto sim, mas não tenho tanta certeza, pois nada em True Detective é tão simples.
Eles pegaram apenas um assassino
(“pelo menos pegamos o nosso homem”). Tuttle e outros, tão ou mais poderosos do
que ele, continuarão matando. Provavelmente pararão por algum tempo, deixarão a
poeira baixar, mas logo contarão novamente com a impunidade e a estrutura que
criaram para prosseguir com seu culto bizarro. Além disso, a cena que mais
incomodou os fãs, a suposta negação de Rust a suas ideias niilistas, não é bem
assim. Quando próximo da morte, ele diz ter sentido estar caindo em um lugar
quente, onde só havia o amor de sua filha, morta em um acidente de carro, lá,
esperando por ele. “Eu não deveria estar aqui, cara”, ele diz. Rust gostaria de
ter morrido. Quase morto, ele sentiu novamente a ilusão da individualidade e da
conexão com um significado superior. Não é que Rust tenha recuperado uma
suposta espiritualidade perdida, mas ele
gostaria de ter morrido imerso nesta ilusão. Quando ele diz que não deveria
estar aqui, sentimos em sua voz o desespero de estar vivo, o desespero que ele
sempre sentiu. Logo no segundo episódio, ao descrever sua ideia da natureza,
Marty lhe pergunta: “Por que você não se mata, então?”. Ao que Rust responde
simplesmente que “não tem a natureza dos suicidas”. Ele está preso aqui. Em
Carcosa.
Nota: A estranha alucinação que
ele sofre pouco antes de ser atingido por Errol parece algo saído de um filme
de Guilhermo delToro. É como um buraco negro que se abre no céu. Mas dá para
notar que esta estranha fenda engole estrelas igualmente negras.