domingo, 20 de fevereiro de 2011

Suspensão de descrença

Conheço muita, muita gente mesmo que tem absoluta aversão a qualquer obra fantástica, seja no cinema ou na literatura. Eu acho bastante estranho isso, já que não tenho aversão a gêneros específicos - a exceção do "filme-família com bichos falantes feitos com CGI vagabunda" e do "filme-de-adolescente cantor que vai provar seu valor em Los Angeles". Sinceramente, acredito que é possível escrever bons livros e bons roteiros em qualquer cenário e gênero. Há sempre gente talentosa em qualquer, digamos, nicho narrativo. Mas, parafraseando o Inagaki, tergiverso. Voltemos.
Há quem prefira o mainstream; ou a literatura do cotidiano, claro. Mas tenho contato constante com pessoas que odeiam fantasia e ficção científica porque não as entendem. Ou melhor, não entendem o universo criado nestas obras; são incapazes de imaginar histórias que não estejam firmemente ancoradas na realidade. Eu poderia ser um tanto preconceituoso e dizer que elas sofrem de déficit de supressão de descrença.
A supressão da descrença refere-se, usando o conceitinho lá da Wikipedia ,"à vontade de um leitor ou espectador, de aceitar como verdadeiras as premissas de um trabalho de ficção, mesmo que elas sejam fantásticas, impossíveis ou contraditórias." O melhor exemplo na literatura mainstream é o realismo fantástico latino-americano (aliás, por muito tempo, o gênero foi o sinônimo da América Latina literária em boa parte do mundo). No Brasil, o representante mais lembrado é Murilo Rubião e seu livro O Pirotécnico Zacarias. São, geralmente, histórias em que eventos ou elementos fantásticos atravessam o cenário da narrativa que é, em sua maioria, realista.
Já a FC&F exige muito mais do leitor (e por isso mesmo, para atingir um patamar eficaz de supressão de descrença no leitor, também exige muito do escritor); muitas vezes, apresenta uma "gramática" própria, e pressupõe um certo conhecimento de seus conceitos, clichês e amplitude. Não agrada a todos, claro. Só impressiona o grau de rejeição quase patológica que algumas pessoas sofrem em relação a FC&F. Sem querer ser machista, destas pessoas que conheço, a maioria são mulheres e, dentre elas, 99% acompanham telenovelas.
Pois bem: confesso aqui sofrer do mesmo problema em relação às novelas. Não consigo ativar meus neurônios de supressão de descrença para aceitar que um moleque de vinte anos possa assumir uma empresa multinacional após descobrir que é o filho perdido de um grande industrial, ou que dois irmãos separados por milhares de quilômetros e dezenas de anos venham a se apaixonar (ok, Luke e Leia, essa é para vocês também), ou ainda que todos os conflitos desenvolvidos ao longo de meses se resolvam em mais ou menos uma hora e meia de capítulo final, culminando no casamento dos mocinhos e na punição exemplar dos vilões.
Enfim, cada um tem seus limites de descrença.

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